sei validas as flores e as hastes despidas de assombro
mas eu não quero resistir à tua pérgola de areia
quero desmanchar-me no regaço do vento...



(...) Até à roda dos meus vinte anos, o Porto e um «bom cidadão do lugar» estavam tão religados no meu espírito, que eu amava a cidade só através de um rosto - o de Domingos Peres das Eiras. Naquelas falas, que Fernão Lopes pôs na sua boca, era a masculina música das palavras sem vileza que eu escutava, e o seu rosto, de que nenhum de nós conhece as feições, uma das poucas imagens de hombridade portuguesa, que eu juntava a outras, num tempo em que a juventude não cessa de crescer.(...) - Domingos Peres das Eiras é o seu nome -dizia eu aos amigos, quando visitei o Porto pela primeira vez, num entardecer já distante, ali, no terreiro do Convento da Serra, fascinado com todo aquele casario que se derramava às golfadas no Douro, as fachadas roídas pelos dias húmidos e viscosos, onde uns restos de sol fulguravam nas janelas e nos tellhados, e as torres mais hirtas pareciam recuar na noite, que começara a cair. - Precisas de ler Camilo - responderam-me. Eu calei-me: não era forte em Camilo. Pensava no espírito tão genuìnamente popular desta terra, a que se encontrava vinculada a mais alta das suas virtudes, a sua fronderie liberalista, que conquistou o privilégio de banir a nobreza dos seus muros e não permitiu ao Tribunal do Santo Ofício celebrar aqui mais do que um só auto-de-fé. Que me importava a mim, naquele momento, o que Camilo dissera do Porto? Poderia alguém, Camilo ou quem quer que fosse, negar aquela beleza desgrenhada e áspera que tinha diante dos meus olhos? Só mesmo quem fosse cego de nascença... (...)
 

Eugénio de Andrade, in prefácio "Daqui Houve Nome Portugal"



BRANDA
Verde descendo bravio
no uivo do rio, no pasto da lã,
quão brando és no tempo vertido
jorrando vencido da pedra pagã?

Consolo acalentando o olvido
do Éden perdido por uma maçã
amansa o trote indefinido
do vento vadio varrendo a manhã.

Soldado acendendo pelo estio
ardente pavio ao tardio sol-pôr,
tropeça no bosque sombrio
ao viço aguerrido cedendo penhor.

Verdura que és olmo, pinheiro,
alfazema, urze, azevinho, hortelã
arreda o fogo maninho
do vergel, do linho, da paz aldeã.
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A paz se mantendo na branda anciã.



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a m o r . . .



se cerro as pálpebras e os punhos para não transbordar
mais te sinto incessantemente no pulso a doer.

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do tempo digo




escrevinhar passagens de cor sépia, ou ocasos de ferro e púrpura
e permanecer esperançada numa explosão clara como a do magnésio.

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Chibata o vento de ânsia, uiva nos juncos e ameias,
e de distância em distância, escrevo para que me leias.

Sopra acro rumo ao peito, pobre escrito, frágil voz,
é de areia, está desfeito. Sopre o vento sobre nós.

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hoje acordaste-me na surpresa do gesto olhando-me flor ...





e eu sagrei-te abril.
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.Foto do Fernando Sardoeira Pinto
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CONVERSA COM OS MEUS BOTÕES - II

Doutor Segismundo diria que nos auto-avaliamos sempre que avaliamos outrem.

Mas eu não vou por aí, e julgo que nos tocamos na ausência, assim como na pertença, por medo do esquecimento e preocupação com o "nunca mais" da nossa condição de mortais. Exactamente a mesma angústia que faz do Homem um criador. Não concordais?! Talvez a arte, assim como a linguagem, não passe de um instinto para superar o atributo singular da consciência.

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praia das artes
mais uma aresta
com fundo de ondas dobradas

frias e macias as testemunhas polidas
no incessante vai e vem limadas
nossas pegadas colhidas
cardos seixos nós de nadas




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Túmulos de D. Pedro e D. Inês | Mosteiro de Alcobaça




Que poema de ternura, canta a pedra alabastrina?
.No lavor, louvor perdura, prova, trova e doutrina.




uma aproximação à arte do despojamento






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levar à raiva
o porto do sol no cálice posto

a boca
- com riso mordaz
de vidro -
mordendo







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ténues      os fios      grisalhos     iluminados     do caminho
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foto do André | Arraiolos | Verão'08






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(e as minhas) minimalistas q.b.

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já posso fazer correr o lápis das minhas mágoas
sem já deitar a perder olhos desfeitos em águas

Coimbra, 1987
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menina circunspecta perto de fonte fresca




Ser de sempre
chilreante e cúmplice…
escolhida a azul e branca das caixinhas de latão:
Sendo a Nívea para a praia, era o Pomito Lencart
para os lábios do meu irmão.
Ser de sempre
chilreante e cúmplice…
Escolhido azul e branco, o biquíni Marie Claire
que me vai favorecer.
E a palhinha riscada do refresco de limão?
Azul e branca (e-vidente mente)!
Amiúde utilizada nas tardes quentes de Verão,
para beber a limonada e o sopro fascinante
(de sempre, efémero sempre)
das bolinhas de sabão.

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- como num retrato antigo -


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Despontará de novo um chá ao lume
de flor de tília, pálida e minúscula,    
no abraço almíscar do doce perfume:  
o da palavra breve mas esdrúxula.      




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prólogo de Caronte

regressava sempre à mesma hora
para ensaiar o olhar sinistro
nas vagas do crepúsculo despenhado

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